OS BONECOS DO CORONEL E A MORTE DO CARNAVAL

Último Regresso

[...] Não deixem não, que o bloco campeão,
guarde no peito a dor de não cantar.
Um bloco a mais é um sonho que se faz
o pastoril da vida singular [...]

No Brasil, parece ser senso comum que o ano só começa depois do carnaval. Não que ficamos sem fazer nada entre os dias que separam o feriado da confraternização universal dos dias de momo, mas sem dúvidas, o que mais fazemos, pelo menos a maioria de nós, é contagem regressiva para os dias de folia.

Em Pernambuco essa tradição festiva atravessa todo o estado, e em cada canto da nossa terra tem uma peculiaridade que anima a folia carnavalesca. São muitas as formas de fazer folia, das máscaras e fantasias que representam o charme dos bailes aos bonecos gigantes, dos papangus aos bumba-meu-boi, das orquestras de frevo as batucadas, e no meio a tudo isso, tem muita gente que sorrir voluntariamente em tempos de folia.

Em Recife temos, talvez, o mais charmoso sentimento do que representa toda essa figuração do carnaval, todas as formas de expressão estão presentes nas várias atividades da cidade. Em cada rua, nos pontos históricos, dos mais velhos aos mais jovens, todos vivem com entusiamo o carnaval, e passeiam na irmã Olinda desfrutando de toda e bela tradição de subir e descer as ladeiras atrás de muitos blocos que animam os dias de folia.

O encanto dos bonecos gigantes atrai a atenção de todos que os vêm, chamam para a festa cada pessoa que se depara com eles, são soberanos nas ruas, seja em Recife, seja em Olinda, são eles que determinam o ritmo, e porque não, representam o tamanho da festa que esperamos todos os anos com o mesmo entusiamo.

Mas parece que essa soberania está ameaçada. Uma nova geração de bonecos está querendo mudar o ritmo da festa, as cores fortes das ruas, e reprimir a folia. São os bonecos do coronel.

Quem imaginaria que, se fosse em Recife, o homem da meia noite teria que sair mais cedo para dar tempo cumprir o seu destino. Pois é, esses novos bonecos querem ditar novas regras a folia, bonecos, como o Geraldo, principal criação, até o momento, do Coronel Eduardo. Um boneco criado para imprimir no meio do povo uma marca típica de bonecos, uma marca sem espontaneidade, sim, porque por mais vida que tenham os bonecos, sempre fazem o que os seus condutores ordenam.

Os bonecos são criações que reproduzem o que os seus criadores mandam, e os bonecos do coronel Eduardo estão reproduzindo a ordem de estabelecer a morte do carnaval.

O Geraldo é um boneco que representa um burocrata, tecnocrata, uma figura arrogante e prepotente, um sujeito que nem sabe o que é carnaval, ainda que seja mais um boneco, é do tipo que anda sempre de roupa alinhada e, no máximo, enfeitava camarotes de bailes elitizados onde o artista, necessariamente, era alguém, que pouco importava o nome, mas que estava em um palco, animando o circo para os senhores e senhoras aos quais o Geraldo representa.

O Geraldo não foi criado com o sentimento do carnaval, onde os principais artistas são o próprio povo, onde o camarote é a calçada de casa, onde o sentimento mais presente na folia é o sentimento de liberdade. O Geraldo foi criado para fazer do carnaval “multicultural”, mais um negócio lucrativo para o Coronel, e sem sensibilidade popular, na hora que ameaçar os lucros, será encerrado.

Pois bem, o povo do Recife foi enganado. Deixaram pendurar o boneco Geraldo no principal posto público da cidade, acreditando nas mentiras e na farsa do coronel, mas hoje sentem os efeitos da escolha, e observam ele querendo mudar tão drasticamente o rumo da nossa história. Esse boneco que tudo fez, na verdade apenas está começando a sua missão, a de substituir gente por sistemas, emoção por números, coletivo por individual, festa popular por festa privada. Foi Geraldo quem fez o começo do fim do carnaval de Recife.

Dizem que na casa grande onde se produz os bonecos do coronel, a produção está a todo vapor, e de onde saiu Geraldo muitos outros podem vir, disfarçados de gente, mas programados para acabar com qualquer reunião de pessoas, no carnaval ou nas lutas populares.

É, estão querendo que a gente mude o roteiro das canções, tão belas, que nos conduzem (ou conduziam) do sábado de Zé Pereira até a quarta-feira ingrata. Ao que parece o carnaval não começará no Galo da Madrugada, pois o Galo só poderá cantar quando o dia amanhecer, ele foi “impedido” de cantar mais cedo, como habitualmente há tantos anos. Também não vamos mais sair pelo Recife Antigo madrugada a fora “foliando” até chegar a hora de ir subir as ladeiras, não poderemos mais ver o sol abraçar Recife indicando que é hora de seguir para Olinda.

Estamos sendo impedidos de viver a nossa liberdade. E no lugar dos blocos que nos arrastam embriagados pela alegria do carnaval, teremos o bloco que nos obriga a estar sóbrios celebrando a sua morte. Aos invés dos metais das orquestras, as sirenes do toque de recolher. No lugar dos batuques do maracatu, os coturnos dos soldados. Ao invés das sombrinhas dos passistas coloridas pela alegria, os cassetetes portadores da tristeza.

Da casa grande do coronel, só sai contradição: Produz bonecos e vende fantasia, mas não nos deixa curtir a festa.

Pelo visto querem nos enviar por um caminho inverso ao que lutamos tanto para alcançar, quando derrubamos os porões da ditadura militar para ocupar definitivamente as ruas. Estamos sendo forçados a deixar as ruas, e porque não, sendo obrigados e viver nas senzalas da casa grande.

Mais uma vez, nos resta resistir, afinal, o que mais se houve na criação dos bonecos do coronel Eduardo, é que somos madeira de lei que cupim não rói. E haveremos de cantar por muitos e muitos anos, ainda que nos reprimam, queiram ou não queiram os juízes, pois o nosso bloco é de fato o campeão.


[…] É lindo ver ver o dia amanhecer,
ouvir ao longe pastorinhas mil,
dizendo bem, que o Recife tem,
o carnaval melhor do meu Brasil.”

Bloco da Saudade